Já são 835 cervejarias em operação no Brasil

Em nove meses, graças à expansão da cerveja artesanal, saltou de 679 para 835 o número de cervejarias em operação no Brasil. O comparativo entre os dados de dezembro de 2017 e setembro de 2018 foi realizado pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). O crescimento é de 23% no período. São 169.681 produtos registrados por estas cervejarias. O Sul ainda é região com o maior número de cervejarias (369), seguido por Sudeste (328), Nordeste (61), Centro-Oeste (51) e Norte (26).

Entre os estados, o Rio Grande do Sul ocupa o primeiro lugar tanto em número de cervejarias (179) quanto em densidade (cervejarias X habitante). No que diz respeito à quantidade de negócios deste tipo, São Paulo ocupa o segundo lugar (144) e a lista segue com Minas Gerais (112), Santa Catarina (102), Paraná (88), Rio de Janeiro (56), Goiás (25), Pernambuco (18), Espírito Santo (16) e Mato Grosso (12).

O geógrafo Eduardo Marcusso e o auditor fiscal federal agropecuário Carlos Vitor Müller são os autores do estudo que revela os números. Eles destacam a importância da transparência ativa dos dados públicos e como estes contribuem para gerar uma ambiente setorial mais estruturado.

Para o presidente da Associação Brasileira de Cerveja Artesanal (Abracerva), Carlo Lapolli, o crescimento significativo é acompanhado pelo aumento da representatividade do setor no consumo:

“O volume de público interessado e comprando a bebida artesanal também está se ampliando. Entendemos que a expansão na oferta faz com que mais pessoas sejam atendidas e percebam sensorialmente os diferenciais dos produtos artesanais. Depois do impacto positivo no paladar, o público vai se informar e perceber que a diferença entre as artesanais e comerciais não está só no copo, mas em toda a cadeia produtiva.”

Na soma de cervejarias figuram apenas as registradas e com fábrica própria, portanto se forem acrescentadas as ciganas (legalmente constituídas com produção em terceiras) e as não registradas no MAPA (ilegais) a quantidade é bem maior.

Em produção de cerveja, o Brasil só perde para a China e os Estados Unidos. São 140 milhões de hectolitros (ou 14 bilhões de litros) anuais, e a tendência é crescente nos últimos 30 anos. Enquanto o Brasil produz 140 milhões de hectolitros, a China 460 milhões, os EUA 221 milhões, a Alemanha 95 milhões e a Rússia 78 milhões.

Mulheres assumem postos-chave

Folha de S. Paulo (Revista da Folha)

No universo cervejeiro, não existe posto que a mulher não ocupe. Estão na produção de insumos, na fábrica, na distribuição, no escritório, no bar, na sala de aula e no evento.

E, segundo elas, cada vez mais. Pode ser dito que estão retomando seu lugar. Isso porque no início, enquanto homens saíam para caçar ou guerrear, eram elas que preparavam as bebidas da família. Diz a Larousse da Cerveja (ed. Larousse) que o domínio feminino da produção diminuiu só no final do século 18, quando o “negócio” atraiu a presença masculina e a produção ganhou tamanho.

Mas, no século 21, elas ainda têm que escutar “tão pequenininha, bonitinha e faz cerveja?”. Elas, então, explicam, rebatem ou colocam a mão na massa a fim de acabar de vez com esse papo machista.

Abaixo, saiba mais sobre: a sommelière Kathia Zanatta, do Instituto da Cerveja; a sócia do bar Ambar, Julia Fraga; a gestora de eventos do setor, Luana Cloper; a mestre-cervejeira Fernanda Ueno; a empresária Luiza Tolosa, da cervejaria Dádiva.

Kathia Zanatta, 34

Quando, no começo do curso de engenharia de alimentos, Kathia Zanatta decidiu que iria pra Alemanha trabalhar numa cervejaria, ela não gostava de beber. Sonhava, sim, em se envolver com a produção.

E conseguiu. Em um janeiro (congelante), acordava às 4h30 e ia, no escuro, pés afundando na neve, até a fábrica da Paulaner, em Munique. O chefe logo perguntou à ex-bailarina se não preferia uma vaga em marketing. Naquela cervejaria a presença de mulheres era incomum. “Por uma semana me deixaram na adega lavando o chão. O começo foi tenso.”

Isso foi há 12 anos. Hoje, o machismo passa reto pela engenheira, que costuma estar à frente de dezenas de alunos nos cursos que conduz em seu Instituto da Cerveja, em Moema, na zona sul de São Paulo.

Ao retornar ao Brasil, passou bons anos na então Schincariol (hoje Brasil Kirin). Fez cervejas na Baden Baden, onde viu quem estranhava uma cervejeira com sacos de malte (“mulher tem que esquentar a barriga no fogão, não aqui”, já ouviu) admitir que ela faria falta. “A dúvida do começo virou respeito quando eu mostrei que era competente no meu trabalho.”

Foi naqueles meses de Alemanha que ela se apaixonou pela cerveja. Na indústria, foi se aprofundando nos rótulos especiais e surgiu, então, a possibilidade de dar cursos na ABS (Associação Brasileira de Sommeliers). Em 2010, ela e o marido criaram o Instituto da Cerveja (hoje com várias especializações).

Apesar da falta que sente do chão de fábrica, Kathia se satisfaz formando outras sommelières -elas correspondem a 30% do total de alunos do instituto (algumas das que aparecem nas páginas seguintes, inclusive, passaram por sua sala de aula).

Julia Fraga, 26

Dos adjetivos que um bar poderia receber, Julia Fraga escolheu “hospitaleiro”. Antes de abrir no ano passado o Ambar, em Pinheiros, na zona oeste paulistana, ela e o noivo passavam pelas casas pensando o que gostavam em cada uma. Ao fim, queriam um lugar que recebesse bem a todos, independentemente de ser ou não um conhecedor de cerveja, um “geek barbudo”.

Para o casal de administradores, a cerveja surgiu no copo e depois como oportunidade para empreender. “É um mercado potencial, que está começando e aprendendo também”, conta ela. “Os fornecedores ainda estão aprendendo. Então, todos têm que se ajudar.”

Foram estudar o produto e provar cervejas para preencher as 15 torneiras do bar -ao todo, mais de 300 passaram por ali. Elas ficam nos barris dentro da câmara fria, atrás do balcão, para que suas propriedades sejam conservadas.

Nesse mercado ainda tão masculino, Julia escolhe o caminho da sutileza. A jovem encara as medidas dos pés à cabeça seguidas de “mas você bebe cerveja?” com tranquilidade. “É algo novo para as pessoas. Depois de uma conversa, o preconceito não continua. Às vezes, até se envergonham do que disseram.”

Preconceito também por trabalhar em bar. “Você vai trabalhar ou só ficar aqui?”, já ouviu ela.

Enquanto bebe uma Perro Libre Sorachi Berliner, que leva o nome do lúpulo usado na receita, de pouco álcool e aroma de limão-siciliano, Julia conta o que houve outro dia. “Achamos que essas coisas não existem mais, mas apareceu aqui um cara com uma cerveja chamada Puta Beer, com a imagem de uma pin-up. Guardei o cartão para não me esquecer disso.” A página do produto na internet complementa o conceito com o slogan: a cerveja que te satisfaz.

“Eu não lideraria um grupo de mulheres, não é da minha personalidade. Mas se isso não existisse, não prestaríamos atenção. Hoje, o mercado abomina esse tipo de ação.”

No bar (r. Cunha Gago, 129), ela e o noivo, que lhe apresentou esse mundo cervejeiro, dividem as funções de acordo com as predisposições. Ela costuma ficar de olho no salão, por exemplo. Cuidando pessoalmente do público, quase 50% feminino.

Luana Cloper, 35

Não sou seu amor, não sou seu benzinho. Estou falando de negócios.” E que envolvem cerveja. Gestora de três eventos desse universo, Luana Cloper apela a uma postura “de general” para impor respeito. “Não estou administrando uma festa.”

Ela está à frente do Brasil Brau (para cervejarias de todos os portes e fornecedores de produtos), do Degusta Beer & Food (evento dentro da Brasil Brau para consumidores) e do Mondial de la Bière (festival de origem canadense que ocorre no Rio de Janeiro).

Ao sair do segmento de moda e assumir esse portfólio, Luana mergulhou no novo tema. “Foi-se o tempo em que as empresas se adequavam aos conceitos dos eventos. Elas buscam locais que realmente correspondem aos anseios do mercado. Por isso, é preciso estar dentro das indústrias e cervejarias.”

Luana tem uma visão meio de dentro, meio de fora do mercado de cerveja. “Acredito que o caminho da artesanal é sem volta e que esse consumo só tende a crescer. Essa cerveja deslumbra o consumidor.”

A administradora vê o público que aprecia (e paga por) bebida artesanal crescer nos eventos -na primeira edição do Mondial, em 2013, eram 16 mil pessoas; na próxima, esperam-se 60 mil.

“A grande indústria percebeu isso com clareza. Em várias partes do mundo a gente vê as cervejarias artesanais sendo incorporadas por grandes grupos.”

Nos eventos, vê crescer também a presença feminina. “Não existe lugar em que elas não estejam e cada vez mais com destaque. Mas ainda há espaço para mulheres em cargos de mais responsabilidade. Mas isso faz parte de um processo, a cultura cervejeira do país é muito nova.”

Luiza Tolosa, 29

Aquele mercado potencial, que parecia independente dos canais de venda tradicionais, atraiu e deu segurança a Luiza Tolosa para que investisse nele seu tempo. Foi então estudando e se envolvendo. “Brinco que minha paixão pela cerveja é conquistada, não à primeira vista. Começou com trabalho mesmo, uma visão de negócio.”

Desde fevereiro de 2014, a cervejaria dela, a Dádiva, está em operação. “Não achei que empreender fosse tão difícil. Há uns meses fui para Portugal e o nível de discussão dos cervejeiros é outro. É uma briga por aumentar o mercado de cerveja artesanal, não uma briga por sobreviver”, conta ela.
“Aqui, entender a burocracia é um trabalho tremendo”, continua a empresária. “Quando você vê, gasta mais tempo para definir uma regra tributária do que criando um rótulo de cerveja, inovando em produto.”

A Dádiva começou pequena, com 10 mil litros instalados de tanque, Luiza e um cervejeiro. Hoje, são três galpões e a empresa abraçou a produção e distribuição de outras duas cervejarias ciganas -os ajudando com as questões que tiram o tempo de quem quer pensar na produção.

“Será que somos concorrentes? Talvez, mas o mercado gosta de pluralidade. É uma relação muito legal de troca de conhecimento. E se hoje temos esse tamanho, é por causa deles.”

Pequenos têm mesmo que se unir quando os grandes são vorazes. “Muitas artesanais estão com receio desse movimento de compra por grandes cervejarias. Falamos muito sobre o que houve nos Estados Unidos: a indústria não acreditou nas artesanais e perdeu muito mercado. Temos medo que as grandes não deixem ocorrer aqui o que ocorreu lá.”

Mesmo administrando tantas coisas, há quem bata na porta da fábrica e peça para falar “com o dono”. “Nunca é com a dona.”

Pois atitudes machistas fizeram com que ela e outras cervejeiras criassem, em 2016, o Ela, um coletivo de mulheres que produziu um rótulo e doou o lucro para uma instituição envolvida com a causa feminina. “Passamos por questionamentos toda hora. Não é só: ‘Deixa eu te contar sobre cerveja’. É ‘deixa eu te contar que sou uma mulher que sabe de cerveja’. Talvez os homens não precisem pedir para serem ouvidos.”

Fernanda Ueno, 30

Nas férias de 2009, quando Fernanda Ueno voltou para Ribeirão Preto (interior paulista), bateu na porta da Colorado. Fez três meses de estágio na cervejaria e, a partir daí, passava algumas horas lá quando ia à cidade. Ela já estudava engenharia de alimentos, em Florianópolis, e produzia cerveja em casa.

Em 2012, entrou definitivamente na empresa, tornou-se supervisora de produção. Estava na Califórnia se formando mestre-cervejeira quando soube da compra da Colorado pela Ambev. O susto passou ao retornar. “A equipe cresceu, mudamos de fábrica e conseguimos melhorar bastante a qualidade.”

Hoje, é “head brewer” da Colorado, um papel importante na qualidade da cerveja. Comanda não só esses tanques, mas também os da Japas, cervejaria cigana que criou com quatro colegas. “Dizemos que é uma forma de realmente ir atrás das nossas origens.”

Teve início como uma brincadeira, de 40 litros. As descendentes usavam nas receitas umê (ameixa japonesa), chá de cevada e wasabi -e esta foi a favorita, uma american pale ale. Depois, veio uma pilsen com flor de jasmim. Outras estão na cabeça, para serem produzidas em até 2.000 litros por lote. “Para ter um chope mais fresco.”

Quando começou na produção, eram poucas as mulheres na área. É um trabalho pesado, “mas descobri que não preciso ser forte, preciso ter jeito”. Ela sobe nos paletes e assim descarrega 50 quilos de malte. “Gosto de descobrir as formas mais eficientes de fazer.”

“Tem muita cervejaria que em festivais objetifica as mulheres que servem cerveja, tirando o foco da bebida. É ruim e acontece até hoje. O mesmo cara que bebe lá vai ao nosso estande achando que a função é a mesma, e não que você faz a cerveja e envasa”, diz. “É um mercado muito masculino, que muda a passos de formiga. Mas muda.”

Um mercado que evolui mais rapidamente sua bebida. “Estamos num momento bom, acompanhando o que ocorre no mundo e com cervejas tão boas quanto as americanas”, diz. “Temos o que desenvolver, inclusive a engessada legislação, mas os cervejeiros estão mais e mais criativos.”