Ampliação no número de fábricas registradas, risco real de fechamento de algumas companhias e aumento no consumo de cerveja. Essas informações, compiladas em diferentes pesquisas e levantamentos realizados nos últimos meses, ajudam a explicar cenários de alguns dos mais difíceis e imprevisíveis meses da história do setor cervejeiro no Brasil, modificado bruscamente pela pandemia do coronavírus.
Mas também indicam um desafio para o segmento de artesanais, que viu apenas as grandes cervejarias conseguirem se beneficiar desse novo contexto. Ao menos é essa a opinião majoritária das lideranças e especialistas do setor cervejeiro ouvidos pela reportagem do Guia, que preparou um dossiê para acompanhar o momento do mercado (acompanhe nas próximas semanas a segunda matéria especial sobre o assunto).
Em 2020, o Brasil registrou aumento de 5,3% no volume de cervejas vendidas, atingindo 13,3 bilhões de litros, a maior quantidade desde 2014, de acordo com um levantamento do Euromonitor. Mas ele se tornou muito mais residencial, com 68,6% de brasileiros com mais de 18 anos dizendo que beberam em casa no ano passado contra os 64,6% de 2019. Um dado que ajuda a explicar os desafios encarados pelas marcas artesanais.
A sommelière Bia Amorim alerta que essa expansão do consumo se concentrou nas principais cervejarias, que têm acesso a canais de venda que não ficaram fechados na pandemia, como os supermercados, uma alternativa que não existe para os pequenos empreendimentos.
“Nos falta ainda poder olhar para o pequeno/nano mercado, sem comparar ele com as grandes. A fatia que cresceu com certeza foi embasada em canais de venda que ganharam força, os supermercados. Para o mercado de cervejarias muito pequenas e locais, essa oportunidade não bateu à porta e nem é viável”, avalia Bia.
Presidente da Associação Brasileira de Cerveja Artesanal (Abracerva), Nadhine França lembra que a pandemia veio acompanhada por uma crise econômica, o que afetou as escolhas no momento de compra. “Temos em paralelo à pandemia uma crise financeira, que diminuiu o poder de compra dos consumidores entrantes no mundo das artesanais.”
Até por isso, como destaca Carlo Enrico Bressiani, diretor da Escola Superior de Cerveja e Malte (ESCM), o aumento do consumo de cerveja, especialmente no ambiente residencial, se concentrou nos rótulos mais baratos, algo que pouco pôde ser aproveitado pelas marcas artesanais.
Presidente do Sindicato Nacional da Indústria da Cerveja (Sindicerv), Carla Crippa relembra que os efeitos da pandemia foram sentidos primeiramente pelas marcas artesanais, em função da indisponibilidade dos seus principais canais de venda. Ela destaca, porém, que o setor cervejeiro, em geral, conseguiu encontrar alternativas para chegar ao consumidor, o que explica esse aumento das vendas, mesmo em um ano tão desafiante – o que incluiu a dificuldade de acesso a insumos.
“Em 2020, havia cerca de 1.400 cervejarias cadastradas no Ministério da Agricultura, em sua grande maioria micro cervejarias que sofreram seja com retração no fluxo de caixa, seja com dificuldades de dar vazão ao produto final. Ao longo de 2020 houve várias iniciativas de apoio ao canal frio, bem como outras iniciativas criativas para fazer com que o produto chegasse ao consumidor final. Por exemplo, por meio de práticas como delivery, take-away e drive thru”, afirma Crippa.
Expansão que não reflete a crise
Outro dado de crescimento encarado com cautela é o da expansão em 14% no número de fábricas registradas no Brasil em relação a 2019, chegando às 1.383, de acordo com o Anuário da Cerveja. Na avaliação de Bressiani, diretor da ESCM, essa abertura de empreendimentos representa a concretização de planos prévios à pandemia.
Assim, os efeitos da crise ainda vão demorar a se refletir no Anuário da Cerveja. “Você tem a abertura das cervejarias porque os projetos são de prazo longo de maturação, refletindo projetos iniciados de 2017 a 2019. O que vai acontecer é que em 2022 deverá ter menos abertura, porque aí pega a pandemia”, explica Bressiani.
Presidente da Federação Brasileira das Cervejarias Artesanais (Febracerva), Marco Antonio Falcone pondera, ainda, que o registro de uma marca no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento não significa que a empresa esteja, de fato, em funcionamento.
“Isso não quer dizer que estão em operação. Há o projeto, o registro, mas não entra em operação, ainda mais em uma crise como a de 2020. Isso o anuário mascara. Assim como o aumento no número de rótulos, que muitas vezes são registrados, mas não entram em circulação”, destaca Falcone.
Já na visão de Alexandre Prim, especialista em finanças do mercado cervejeiro, a expansão tem relação direta com a existência de mercados que ainda não foram conquistados pelo setor. São nessas regiões que podem ter se concentrado essas aberturas, em sua avaliação. E foi, inclusive, o que aconteceu no Acre, onde foi registrada a primeira cervejaria do estado, a Seringal Bier.
“Há regiões no país que ainda possuem uma baixa oferta de produtos cervejeiros, como Norte e Nordeste, e, portanto, há grande oportunidade de atender este mercado. Isso ressoa como uma oportunidade para empreendedores investirem em negócios com maior propensão de lucratividade”, afirma o especialista.
Além disso, para Prim, a abertura de cervejarias também pode representar a busca por uma alternativa financeira, em uma tentativa de empreender em meio a uma grave crise econômica. “O custo de entrada para registrar uma cervejaria, produzir e vender é relativamente baixo. Quero dizer, se alguém conseguiu juntar R$ 100 mil e tem dúvidas no que investir, este cidadão consegue abrir uma cervejaria de baixa escala e iniciar uma jornada empreendedora. Aos poucos consegue levantar grana e tomar maiores proporções. Este fato torna-se relevante em um momento de reorganização profissional (em caso de perda de empregos) e/ou recolocação no mercado.”
Dificuldade de adaptação
Mas, se o Anuário da Cerveja registrou um aumento no número de fábricas registradas, muitas delas convivem com o temor de encerrarem as atividades. Um levantamento realizado pela Abracerva indicou que 24% dos empreendimentos têm alto risco de fechar.
Na avaliação de Nadhine, esse elevado risco à sobrevivência de diversas cervejarias artesanais se dá pela dificuldade de mudança no foco das suas operações, somado ao apoio quase irrelevante vindo do estado para a sobrevivência dos negócios de pequenos empreendedores durante o período de crise.
Com opinião complementar, Falcone avalia que o quadro de ameaça às artesanais se dá pela perda de vários canais de venda durante a pandemia. “Tivemos uma queda brusca no faturamento. O aumento do consumo foi em casa, com a venda de supermercados e deliveries. O que se perdeu foi a venda nos bares e restaurantes. A minha marca, a Falke Bier, tinha 160 postos de venda e isso se perdeu. É um espelho do que aconteceu em todo o setor. O quadro de ameaça de cervejarias é real”, alerta o presidente da Febracerva.
Para Prim, a incerteza provocada pela pandemia explica essa possibilidade de fechamento de parcela tão relevante de empreendimentos. Ele destaca que muitos deles tiveram seus planos – e investimentos – arruinados pela mudança drástica no mercado e na sociedade.
“Por exemplo, foi realizado um investimento arrojado e tomou o capital de giro da empresa. Com a pandemia surgindo, as vendas caíram, então este empreendedor não teve condições de investir em e-commerce ou outros canais de venda. Ao contrário, acabou o ‘fôlego’ que ele tinha para manter o negócio a longo prazo”, argumenta o especialista.
Embora reconheça que cervejarias dependentes da venda de chopes estejam em situação mais complicada, Bressiani não crê que o cenário seja tão dramático. Para ele, é improvável que uma parcela tão grande de empreendimentos feche as portas. Mas muitos, na sua opinião, vão submergir.
“Uma parcela está com a vida complicada. São aqueles que estavam focados em bares, restaurantes e eventos. Quem trabalhava só com chope está sofrendo. Mas fechar é uma decisão demorada a se tomar. O que se faz é reduzir a produção e esperar passar a tempestade”, conclui o diretor da ESCM.