“Estamos tendo a oportunidade de participar de um momento muito especial e raro quando falamos em agro no Brasil: o nascimento de uma nova cultura.” Felipe Sommer, coordenador de projetos especiais da Ambev, fala entusiasmado sobre a produção de lúpulo no País, às vésperas de inaugurar oficialmente a nova fábrica de beneficiamento da Ambev em Lages, na Serra Catarinense.
A unidade foi construída antes da pandemia no mesmo local da cervejaria e integra o Projeto Fazenda Santa Catarina. O objetivo é fomentar o cultivo de lúpulo no Brasil por meio da agricultura familiar. “É a primeira fábrica de beneficiamento da planta em escala industrial no Brasil. Fundamos em 2019, mas, devido à pandemia, adiamos a inauguração para o próximo mês de abril”, diz o coordenador do projeto, que é engenheiro químico e mestre cervejeiro.
O espaço também abriga um viveiro com capacidade de produção anual de 60 mil mudas, as quais são doadas aos agricultores, e uma lavoura experimental de 1 hectare com variedade de espécies cultivadas para realização de testes de manejo.
“A Ambev não está produzindo lúpulo. Está ajudando os produtores a implementar uma nova cultura, entendendo as suas dores e o estágio de cada um, para quebrar barreiras, ajudar a ganhar escala e qualidade, além de transformar o que hoje ainda é uma matéria-prima agronômica em um produto”, explica.
Embora incipiente, a plantação de lúpulo no Brasil já é uma realidade e a ideia de se iniciar um negócio na área é tentadora. Afinal, o País é o terceiro maior produtor de cerveja no mundo, de acordo com o Sindicato Nacional da Indústria da Cerveja (Sindcerv). No entanto, é dependente do lúpulo importado – em 2021, foram importadas 4.721 toneladas da planta, segundo o Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços.
A produção brasileira não representa nem 1% do mercado, segundo a Associação Brasileira de Produtores de Lúpulo (Aprolúpulo), embora tenha crescido de 9 para 24 toneladas, entre 2020 e 2021. Se em 2018 havia 60 empreendedores do nicho no País, hoje já são ao menos 190 cadastrados pela Aprolúpulo. Cerca de 20 destes, de Santa Catarina e São Paulo, são parceiros da Ambev, totalizando 30 hectares plantados.
Por esse projeto da Ambev, o trabalho começa com a doação de mudas de origem comprovada, uma das limitações para quem está começando, uma vez que o custo da unidade varia de R$ 30 a R$ 40. Depois de plantadas nas terras dos agricultores, técnicos da Ambev fazem a colheita e levam as plantas para serem beneficiadas na fábrica.
Com isso, os produtores têm acesso a uma estrutura cara. Além da máquina de colheita, considerada um dos maiores gargalos da produção atualmente, o negócio ainda requer outros equipamentos, como secador, triturador, peletizadora e embaladora a vácuo.
Da matéria-prima ao produto
A Ambev paga R$ 110 por quilo aos produtores associados que vendem o lúpulo em plantas e R$ 150 por quilo para os que também fazem a colheita. A título de comparação, a matéria-prima importada chega ao Brasil na faixa dos US$ 12 (cerca de R$ 60), pronta para ser utilizada.
“Uma coisa é plantar lúpulo e ter a flor. Outra é produzir o pellet (pequenos cones de lúpulo comprimido a vácuo depois de colhido, seco em estufa e triturado), com análise de alfa ácidos, resina, aromas e pesticidas. Ou seja, toda a transformação de uma matéria-prima em um produto pronto para ser usado nas cervejarias. Por isso, dizemos que é um projeto de fomento”, ressalta o coordenador.
A previsão esse ano é que a fábrica em Lages produza 1,5 tonelada de lúpulo, mas a meta é aumentar a capacidade para 10 toneladas. Para isso, a companhia pretende alcançar mais 20 novos produtores no modelo de fomento em Santa Catarina e quantos parceiros conseguirem Brasil afora, por meio do contrato de compra de lúpulo em flor (já colhido).
“Ano passado, muitas pessoas conheceram o lúpulo e começaram a plantar. Agora é o momento de se pensar em escala. Esse é o ano do boom do lúpulo”, afirma o executivo. Segundo ele, o custo do ingrediente nacional ainda não é competitivo frente ao importado, por isso é tão importante desenvolver nichos e terroir, assim como ocorre com as culturas do café e do vinho.
“Os importados são de altíssima qualidade, mas levam alguns meses para chegar ao Brasil. Ter acesso a um lúpulo novo, mais fresco e produzido localmente pela agricultura familiar, além de diminuir a dependência de importação, dá ao cervejeiro a oportunidade de criar novas receitas, marcas e produtos com outros tipos de apelo com valor comercial. Com o tempo, vamos colocar o nosso tempero e criar um diferencial”, finaliza.
Confira a seguir trechos da entrevista concedida por Felipe Sommer ao Estadão.
Como você vê a produção de lúpulo no Brasil atualmente?
Assim como ocorreu há algumas décadas com a maçã, a uva e a soja, dizia-se que não era possível produzir lúpulo no Brasil por causa do clima. Hoje, há pequenas produções em diferentes locais, como Brasília, Minas Gerais, São Paulo e Rio de Grande do Sul. Contudo, cabe ressaltar que essa é uma cultura nova, por isso ninguém tem verdades absolutas. Nós, inclusive, estamos aprendendo.
Já dá pra saber quais as características do lúpulo brasileiro?
É muito cedo ainda para falarmos em terroir, como temos no café, na uva e em algumas outras culturas. Os produtores estão testando variedades, manejo e aprendendo a fazer uso de suplementação luminosa. A chinook, por exemplo, é uma variedade de origem americana, com características de amargor, muito usada nas cervejas IPAs, que, no Brasil, apresenta aroma de maracujá, diferentemente da cultivada nos Estados Unidos. Essa já é uma característica do nosso terroir, mas é muito cedo para inserir a informação no rótulo.
Com o tempo, vamos colocar o nosso tempero e criar um diferencial. Do contrário, vai ser difícil fazer essa cultura estourar. O custo do lúpulo nacional ainda não é competitivo frente ao importado, por isso é tão importante desenvolver nichos e terroirs.
Então, o custo do lúpulo produzido no Brasil ainda é superior ao importado?
Pagamos R$ 110 reais/quilo aos produtores associados que vendem em plantas. Para o produtor que já faz a colheita, oferecemos R$ 150/quilo pelo lúpulo em flor (in natura). Os valores são estipulados em contrato e estão coerentes com o mercado, mas há quem ache pouco. A título de comparação: o lúpulo importado, por exemplo dos Estados Unidos ou Alemanha, chega ao Brasil na faixa dos US$ 12 (cerca de R$ 60), em boa qualidade e pronto para ser utilizado. Nós estamos subsidiando praticamente todo o lúpulo produzido por meio do projeto, transformando em pellet e embalando a vácuo, que é a matéria-prima utilizada pelo cervejeiro.
Quais os desafios para quem quer empreender no setor?
A primeira dificuldade é conseguir mudas certificadas, com qualidade e sem doenças, uma vez que existem poucos viveiros no Brasil. Depois, vem a questão do acesso ao beneficiamento. O mercado brasileiro carece de equipamentos e o custo das máquinas gira em torno de seis dígitos.
O manejo também é outro desafio. Não existe uma receita definida, sequer produtos oficialmente regulamentados. Estamos em contato com grandes produtores do agro no exterior para entender, por exemplo, quais defensivos funcionam melhor na plantação de lúpulo, mas é preciso atuar junto ao Ministério da Agricultura para garantir as certificações.
Ter para quem vender também é outra das grandes dificuldades, tendo em vista que a maioria dos produtores ainda está comercializando lúpulo em flor, em pequenos volumes. As plantas de lúpulo tem pouco valor comercial, diferentemente dos pellets embalados a vácuo e com análise de qualidade. Como há poucos laboratórios que fazem o trabalho, o custo também é elevado.
E onde está o gargalo da produção?
O gargalo da produção é justamente a colheita das plantas. Uma planta chega a ter de 500 a 1000 cones, ou florzinhas. Imagina tirar uma por uma à mão? É quase impossível. Desenvolvemos a primeira máquina de colheita do Brasil para remover a flor há dois anos. Hoje, já há cerca de três no mercado com o mesmo princípio de funcionamento da nossa. Agora, estamos importando outra da Alemanha, que aumenta em 10 vezes a nossa capacidade, de 20 plantas/hora para 200 plantas/hora.
Como o lúpulo é consumido no Brasil?
No Brasil, 99% do lúpulo é importado em pellet à vácuo, em embalagens de 10 kg a 20 kg que duram cerca de dois anos. Esse é o tipo mais utilizado pelas grandes cervejarias e pelas artesanais com um pouco mais de automação. O lúpulo em flor dá muito trabalho para o cervejeiro. Pode entupir equipamento e perder qualidade facilmente. Além disso, precisa ser colhido e levado logo em seguida para fazer a cerveja, se não oxida.
Por que ainda há poucas cervejarias utilizando lúpulo nacional?
Toda vez que se começa uma cultura, lidamos com um organismo vegetal, que tem um tempo de adaptação, além das questões envolvendo o beneficiamento. Estamos em fase de desenvolvimento. Quando colhemos, por exemplo, 1 kg de um lúpulo, processamos e comparamos com o importado, o resultado é maravilhoso. Mas estamos falando de uma escala de quilos, o que é muito pouco.
Para uma cervejaria se comprometer a produzir uma bebida com o lúpulo nacional, ainda não há garantia de que receberá a quantidade e a qualidade necessária. A partir do momento em que o cervejeiro conseguir comprar 100 kg do ingrediente, será possível produzir a mesma cerveja o ano todo, com um lúpulo padronizado, com análise, sabor e aroma padrão. Esse é exatamente o momento em que estamos vivendo. É preciso prestigiar o lúpulo nacional, saber que tem uma concentração menor e o desafio de se ter uma escala, o que implica fazer alterações na receita. Dá trabalho fazer adaptação, mas isso faz parte do desenvolvimento da cadeia.
Diante disso, como incentivar o uso do ingrediente produzido aqui?
O cervejeiro no Brasil já está acostumado a usar o lúpulo importado, seja da Alemanha, Tchecoslováquia ou Estados Unidos. Incentivá-lo a utilizar o lúpulo nacional não é tarefa simples e requer um processo de convencimento. É necessário exaltar o ingrediente local, regional ou nacional, mais fresco e oriundo da agricultura familiar para termos um apelo frente ao importado. Precisamos criar valor à matéria-prima nacional, por isso estamos em contato com toda a cadeia produtiva. Queremos chamar a atenção da indústria para essa nova cultura que está nascendo e para um mercado que pode ser gigantesco.
A Ambev já utiliza o lúpulo nacional?
Já lançamos quatro rótulos. Na primeira vez, o ingrediente deu vida à Green Belly, feita junto à catarinense Lohn Bier. É uma cerveja com produção regular, mas vendida apenas nas redes de supermercado de Santa Catarina e via e-commerce. Meses depois, desenvolvemos a Brazilian Blonde Ale e a TodaNossa, que é feita com lúpulo, malte de cevada e fermento nacionais. Por último, produzimos uma edição especial da Colorado Brasil com S.
Assim que tivermos uma escala que nos permita ter um volume de 5 a 10 toneladas de lúpulo, a intenção é ter uma cerveja regular. Para se ter uma ideia, a escala de uma cervejaria artesanal é da ordem de milhares de litros, enquanto a de uma grande empresa gira em torno de milhões de litros. Queremos fomentar o ecossistema produtor de lúpulo. A ideia é que outros cervejeiros também usem o ingrediente, não só a Ambev, para se criar um mercado.
Quais são as variedades de lúpulo mais plantadas no Brasil?
Varia muito de acordo com a região. Arrisco a dizer que a espécie mais plantada atualmente é a cascade, porque é um tipo lúpulo americano usado para a fabricação de diversos estilos de cervejas. Mas já tive acesso a mais de 15 variedades, dos EUA, da Europa, da Tchecoslováquia e da África, sendo testadas no Brasil. No viveiro da Ambev, importamos mudas da Alemanha e dos Estados Unidos e trabalhamos com quatro variedades, mas há produtores parceiros com mais de 10. Estamos em fase de escolher as que mais se adaptam e são mais interessantes do ponto de vista cervejeiro.
O governo tem atuado no desenvolvimento da cadeia?
O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) teve um papel importante, há cerca de dois a três anos, ao fornecer a autorização e a regulamentação para plantar lúpulo no Brasil. Assim como vem ocorrendo com o cenário da cannabis, o MAPA tem que autorizar a importação das mudas. Agora, o governo vai ser fundamental para regulamentar o manejo. É preciso registrar os herbicidas, os fungicidas, o adubo, até mesmo os produtos orgânicos, a serem usados na cultura do lúpulo. A Ambev e a Aprolúpulo vêm trabalhando nesse sentido.
Também fazemos parcerias junto a órgãos como a Emater (Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural) e Epagri (Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina), que contam com extensionistas e agrônomos. Treinamos os profissionais para que possam auxiliar os produtores com questões relacionadas ao manejo, afinal, tudo é novo.